terça-feira, 26 de maio de 2009

Sobre Processo Criativo

Do Processo Criativo à Criatividade como Processo

“No princípio criou o Senhor Deus os Céus e a Terra” (Gen. 1:1).

Toda vez que pensamos em criatividade, nos remetemos imediatamente à idéia de inspiração, como uma força, um “vento” mágico que nos ofertaria, graciosamente, o conjunto de habilidades necessário à produção de coisas incontestavelmente novas.

Achamos, no final das contas, que a inspiração é um sopro (ou um fôlego de vida). Queremos criar, “do jeito que Deus criou”. A variante Laica, nem por isso menos mística dessa impressão é, talvez, a noção de gênio. Formulada por Kant e levada às últimas conseqüências pelo romantismo.

Do espelhamento ordinário das duas perspectivas, o que nos resta é de um lado um Deus “todo-razão”, lançando luz sobre as trevas do universo infinito e ordenando-o (“E disse Deus haja Luz [...] e disse Deus haja separação entre água e terra seca / entre dia e noite / entre firmamento e terra,...") e do outro, o homem iluminado, movido por algo de metafísico ou por uma disposição de animus inexplicavelmente criativa.

Fui convidado a dar uma palestra sobre processo criativo na faculdade, revirei minhas coisas, referências, bibliografias e, de repente, peguei-me lendo o livro de Gênesis – não era para falar sobre processo criativo? Então vamos ler o livro da criação – curiosamente, descobri que, ao contrário do que a tradição religiosa nos fez crer, o relato da criação do mundo, assim me pareceu ao menos, não nos fala da criatividade como pura iluminação, mas como processo. Diria até que podemos extrair do referido relato uma metodologia de trabalho. É exatamente isso que vamos tentar adiante.

Faço aqui uma ressalva, antes que os especialistas me acusem de heresia. Não pretendo abordar o texto de um ponto de vista hermenêutico rigoroso. Não pretendo discuti-lo de um ponto de vista teológico e especializado. Nem pretendo também criar nenhum novo movimento do tipo “criatividade profética”. Tomarei a liberdade de considerá-lo [“apenas”] sob o ponto de vista literário e, sendo assim, reservo-me ao direito de inventar sentidos, experimentar idéias, partilhar impressões, ao contrário de buscar saber o que “efetivamente” o texto quer dizer sobre esse assunto ou sobre qualquer outra coisa. Dito isso, vamos deixar de desculpas e partir para o que interessa.

“No principio criou Deus os Céus e a Terra”. Acompanhando a narrativa bíblica, a primeira coisa que percebemos é que Deus poderia ter criado o mundo num estalo, que o mundo poderia ter sido criado inteiro, todo pronto de uma vez – alguém duvida disso? As águas poderiam ter surgido junto dos peixes, que surgiriam no mesmo “instante” em que se deu a separação entre dia e noite, que se daria no mesmo instante em que surgira o próprio homem, e assim por diante.
Entretanto, a criação divina se divide em sete etapas. Cada coisa foi criada no seu devido “tempo”. Primeiro a luz, depois a separação entre luz e trevas, então nomeia o dia e a noite (criando, por assim dizer, o tempo), a seguir, separa o firmamento da Terra, terra seca e oceanos e assim por diante.

Uma das coisas que nos paralisa talvez, diante do desafio criativo, é a expectativa de que a criação deva se dar por inteira. Como se Deus tivesse dito – haja tudo. O relato da criação divina nos mostra, porém, que há um tempo para cada etapa que precisa ser cumprida num processo criativo. Mostra que criar depende de regras, de ordem e de método. Estudo, pesquisa, experimentação, tentativa e erro, substituição de idéias, rascunhos, papel amassado. Todas essas coisas precisam ser incorporadas e adequadas à sua metodologia de trabalho.

Outra observação importante é que a bíblia nos diz que entre um ato e outro da criação “houve tarde e manhã”. Paciência e disciplina são duas virtudes importantes sem as quais não há nenhum processo criativo consistente. O tempo é um agente criativo importante. Precisamos aprender a deixar o trabalho “entardecer”. Há sempre um momento de “ocaso” do processo. Momento de voltar para casa, repensar a cena, as cores, as notas ou arranjos.

Momento de amadurecer a idéia de uma nova cena, de deixar o ator pensar em suas falas, se acostumar com as marcas, etc. Momento de desligar do trabalho e pensar em outras coisas, assistir a coisas que nada tenham com ele, ouvir outras músicas. Às vezes nos fechamos demais num projeto e não percebemos que as “soluções” para ele podem vir de fontes inimagináveis. Temos, entretanto, que nos abrir para essas fontes. E passado esse entardecer, nos forçar também a voltar, afinal, já é dia e precisamos continuar com o trabalho. Como saber, porém, o momento do entardecer e o momento de retornar?

“Viu Deus que isso era bom”. A bíblia nos diz que Deus olhou para sua criação. Autocrítica é fundamental nesse momento. A crítica externa também, pessoas da área, de ministérios vizinhos – ficamos sempre tão isolados, o momento de ensaio parece uma ótima oportunidade de troca com “o pessoal do ministério de teatro da igreja ao lado” – não parece? Ouvir e saber julgar, construir parâmetros também para julgamento, assistir a outros ministérios, ver o que se está produzindo fora da igreja, ler, estudar, capacitar o olhar. Aprender a ver, não como o “irmão da igreja”, tão condescendente, mas de forma especializada, ver com qualidade e não apenas com boa vontade. Mas só isso, pois,“viu Deus que era bom”.

Vou insistir nessa fala para dizer que Deus não somente viu, mas também viu que era bom. Tão importante quanto ter um olhar franco e sem melindres é saber ver o que há de positivo em cada ponto do processo. Isso mesmo. Creio que a chave seja aprender a encarar o processo como processo (algo pode ser mais simples que isso?). Uma cena trabalhada pela primeira vez terá uma série de problemas, se eu for julgá-la como um produto acabado, o juízo será terrível, mas, como processo, posso avaliar o que conseguimos avançar, compreender os “defeitos” da cena como parte do material que precisa ser elaborado e reconhecer as conquistas possíveis para aquela etapa do trabalho.

De outra forma, ficamos travados, não conseguimos avançar porque os contornos do desenho estão mal feitos, porque não encontramos as cores certas, ou porque a inflexão correta não aparece. Estar sempre disposto a tentar, tentar é a graça, precisamos aprender. São os esboços de cena que nos preparam para as cenas mais perfeitas. Os desvios fazem parte do processo e isso é sempre muito bom.

“Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gen. 1:26)
“Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida; e o homem passou a ser alma vivente.” (Gen. 2:7).
Ainda:
“Havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito.” (Gen. 2:1)

Bom, quero terminar dizendo que nenhum processo criativo se faz sem trabalho ou sem descanso. Por um lado, Deus formou o homem, soprou em suas narinas. Criar o homem, numa expressão que causaria arrepio aos teólogos, deu trabalho a Deus. A criação não foi um ato gratuito e sem importância. Houve um investimento de Deus em nós e no mundo, por isso Ele pôde olhar para tudo e sentir, ao final, o prazer de uma realização. Mas não só isso, descansou Deus também no sétimo dia.

Há um momento do processo criativo no qual precisamos ter a coragem de descansar da criação. Dar o trabalho por encerrado. Trata-se de um ato de coragem, assumir os riscos de dizer – está acabado, foi isso o que eu produzi – e não poder de nada mais se desculpar. Algumas vezes é melhor ser mediano com pouco trabalho e poder sempre dizer – ensaiamos tão pouco – do que correr o risco de não sermos “geniais” ao final de todo nosso esforço. Talvez parte do que nos impeça de investir tudo o quanto podemos em um trabalho não seja realmente a preguiça, mas o medo de percebermos que, mesmo depois de tudo, não conseguimos fazer o suficiente.

Se me permitem terminar com um pequeno conselho, sempre que se der tudo, se terá dado o suficiente. Talvez não para aquela obra em particular, mas para o trabalho em geral. Nosso próprio ministério também é um processo, não se resume a um ou a outro episódio. O compromisso não é o de se fazer sempre coisas boas e memoráveis, mas o de crescer sempre com aquilo que se faz. Não fazer por acaso, não trabalhar de qualquer jeito, mas com método, ser sincero na autocrítica e corajoso ao encarar o processo. Compreendendo, por fim, que "o todo é maior que a soma das partes” e que tudo isso é sempre muito bom.

Que Deus os abençoe.

texto de Guido Conrado, extraído do Portal Cristianismo Criativo

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A diferença entre arte e cultura


Artigo de Helena Katz para o Jornal Urbano (abril/2009).

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A Igreja como Promotora de Arte

Carol Gama participando do debate no ArteCéu (Som do Céu 2009)
Gladir Cabral, Carol Gama e Denise Bahiense - debate ArteCéu (Som do Céu 2009)

Uma das pessoas muito bacanas com as quais o Catavento estreitou laços é a Carol Gama. Artista plástica formada pela Unicamp e Produtora de Arte do Programa Plataforma, a Carol expôs seu belíssimo trabalho "Estandartes do Vento" no ArteCéu - espaço no qual o Catavento também se apresentou durante o Som do Céu 2009. A gente se deu muito certo e faz questão de trazer pra vocês um pouco da reflexão proposta pela Carol durante um dos debates que rolou por lá.

Aproveitamos para deixar aqui registrado nossa admiração pelo trabalho da Carol! Um beijo do catavento pra você, querida!

A Igreja como Promotora de Arte

Carolina Gama

"Recentemente fui convidada a participar de um debate cujo tema era “A igreja como promotora de arte”. Apesar da minha timidez e da tendência a fugir de confrontos, concordei em ir porque como artista e como cristã sei que o meu silêncio não é uma opção. Não acho que eu tenha muito a oferecer, confesso que tenho mais questionamentos do que respostas. Por isso optei por contar um pouco da minha experiência e de algumas reflexões que fiz ao longo do caminho na esperança de, com isso, dar uma pequena contribuição.

Tempos atrás, numa Bienal do Livro, assisti a um bate-papo entre a poetisa Adélia Prado e o Frei Beto. Em certo ponto da conversa o Frei Beto disse - “A Adélia olha para uma pedra e vê um diamante”. A Adélia, por sua vez, respondeu que ela não fazia nada, apenas servia de instrumento nas mãos de Deus. Nas artes, costuma-se ligar o termo “beleza” a coisas alegres, simétricas, coloridas e relaxantes. Eu prefiro o ponto de vista do Frei Beto. Penso que o artista que reproduz a beleza em seu trabalho, não é aquele capaz de recriar uma imagem com perfeição, que usa como tema apenas elementos da perfeita criação de Deus ou temas bíblicos. O artista que retrata a beleza em sua obra é aquele capaz de mostrar o mundo aos olhos de Deus. É aquele que propõe uma maneira completamente nova de olhar para as coisas, encontrando vida nos mais obscuros cantos do coração do homem, dando lugar de destaque ao que é considerado inútil, marginal, simples. É o que “olha para uma pedra e vê um diamante” e é capaz de comunicar isso ao outro.

Um exemplo muito conhecido de artista cristão foi Vincent Van Gogh. Por mais que tentem classificá-lo como “Impressionista” ou “Expressionista”, ele foi único, produzindo uma obra à frente do seu tempo, e oferecendo um jeito singular de olhar para o mundo. Quando foi para as minas de carvão da Bélgica, como um jovem missionário, fazia desenhos para vender e dar o dinheiro aos pobres. Mas o que ele desenhava eram os carvoeiros miseráveis que viviam a sua volta, em seus sofrimentos e beleza.

Há dois anos fui assistir a um sarau em uma igreja na cidade de São Paulo. O intuito dos organizadores não era apenas promover apresentações musicais, mas incluir no programa outras formas de arte. Para a exposição de artes plásticas compraram alguns metros de tecido preto (que deveriam cobrir as janelas) e neles fizeram uma “arte moderna”. Lambuzaram as mãos de tinta e imprimiram no tecido, espirraram tinta no tecido, etc. Tudo muito colorido no fundo preto. Esses tecidos foram pendurados. E em cima de cada um colocaram uma etiqueta com o nome da “obra” e do “artista”. Primeiramente, se considerarmos que aquelas cortinas eram obras, seria uma falta de respeito colar a legenda em cima delas, o mais adequado seria ao lado, na parede. Em segundo lugar, a técnica de arte escolhida demonstra o preconceito que existe de muitos com relação ao que é a arte moderna e contemporânea.

Quem não tem muito conhecimento das artes plásticas tem a tendência de achar que hoje qualquer coisa que se faça é arte. Não se leva em consideração o percurso histórico que levou artistas a fazerem uma arte aparentemente banal e fácil, e nem se leva em consideração o processo de trabalho do artista que não produz seu trabalho em cinco minutos, ou se o faz é devido a uma bagagem técnica e teórica acumulada. No caso dessa igreja, o intuito de promover a arte se tornou deboche e desrespeito. Poderia-se dizer que ao menos houve uma iniciativa desses irmãos. Mas eu tenho pensado muito sobre os recursos que temos e o quanto desfrutamos deles. E acredito que a desculpa de que “ao menos houve uma iniciativa” é inaceitável no contexto onde aquelas pessoas estavam inseridas.

São Paulo concentra uma variedade ampla de artistas plásticos, de museus e de galerias de arte. Os dois principais jornais da cidade divulgam diariamente exposições tanto de obras de arte históricas quanto de artistas contemporâneos. Quem não gosta de ir a museus, ou não tem tempo, encontra obras de artistas consagrados, como Tomie Ohtake, espalhadas pela cidade, em canteiros, praças ou calçadas. Nem o crente, que tem a desculpa de que só “consome” arte de artistas cristãos, tem desculpa. Existem muitos artistas plásticos profissionais que são cristãos, que atuam no meio secular. Alguns inclusive tem suas obras em museus e coleções importantes do país. Além disso, existe a internet, onde inúmeros artistas, museus e galerias do mundo todo exibem obras e fornecem informações sobre artistas e sobre o que são as artes plásticas e visuais. No mínimo existe o Wikipedia.

A igreja não pode promover a arte sem antes conhecê-la, compreender suas normas, sua essência, seus porquês. Como é possível promover algo que não se conhece? Se considerarmos que as artes são linguagem, como podemos dialogar sem escutar? O que a igreja tem feito em geral, é criar uma arte dentro de uma redoma, incapaz de dialogar com o mundo ao seu redor. E isto não é arte. No mínimo é uma arte aleijada, pobre e que não acrescenta nada.

Em um primeiro momento acredito que a igreja deve ser acima de tudo incentivadora da arte, estimulando seus membros a conhecer a arte, a frequentar exposições, apresentações, cinemas ou qualquer outro lugar onde a arte seja promovida de maneira séria e profissional. Deve-se desvincular a arte da instituição religiosa. Num segundo momento a igreja deve se prontificar a acolher essa realidade, suas contribuições, tensões, impressões, desfavores, contradições e acolher inclusive aqueles que escolherem enveredar por esse caminho."